O que leva uma família a viver numa van?
Ao longo dos próximos meses, vamos desvendar histórias de famílias que nos motivam e inspiram no nosso dia-a-dia. São famílias que ousam fazer diferente, que têm a coragem de desafiar os padrões e que vão sempre à procura daquilo que as faz feliz.
As famílias que nos inspiram tiram o melhor partido da vida, gozam cada momento e divertem-se juntas.
São histórias diferentes, bonitas e originais, que esperamos que vos inspirem também!
Foi a 8 de Março de 2004 que Sofia Vieira embarcou na maior, e talvez mais arriscada, aventura da sua vida. Com apenas uma mochila às costas e 300 euros no bolso cruzou os céus até Londres, numa decisão que a levou à liberdade por que tanto ansiava… e, de alguma maneira, à família que hoje, 14 anos depois, continua a construir com Quentin Gillet.
Foi na capital inglesa que Sofia conheceu o “camone”, como carinhosamente apelida o pai dos filhos, Gabriela e Tiago – um encontro entre uma portuguesa e um francês que será consequência directa daquele que Sofia considera o “dia mais importante” da sua existência, porque definiu todos os outros dali para a frente.
A Maria do Mar
Actualmente em Aquitaine, no sudoeste de França, a família viveu em doze moradas diferentes nos últimos dez anos – e, pelo caminho, percorreu Portugal de lés-a-lés numa autocaravana, a Maria do Mar.
“Eu sempre sonhei viver numa van, mas o Quentin, no início, não estava muito convencido de que seria uma boa ideia, com duas crianças ainda tão pequenas. Na verdade, quatro meses e meio depois, tivemos a noção de que nem nós nem os miúdos voltaríamos a ser os mesmos, depois de termos vivido na Maria: a capacidade de adaptação e flexibilidade que a experiência exigiu, a forma como a experiência em si nos obrigou a crescer enquanto pessoas e enquanto família, nos ensinou a sermos mais práticos, mais organizados, mais bem resolvidos, e de como tudo isso nos fez ainda mais “unidade”.
Na carrinha não havia quartos onde nos pudéssemos isolar quando precisávamos de espaço. Nem havia mais do que uma panela enferrujada, um púcaro antigo e uma frigideira, na nossa dita cozinha. Não havia um armário de brinquedos ou livros, e a roupa tinha de ser lavada de dois em dois dias, porque só tínhamos espaço para o essencial.”
O abandonar do conforto a que chamamos casa foi o primeiro passo de uma experiência muito reveladora para toda a família, pais e crianças, trabalhando as suas convenções pré-definidas em relação àquilo que é realmente importante.
“Na altura [a viagem começou a 9 de Fevereiro de 2015], numa entrevista que demos a um jornal, a jornalista perguntou à Gabriela se ela não ficava triste por não ter um quarto só para ela e por não viver numa casa propriamente dita. Lembro-me de que ela sorriu e respondeu prontamente: “A minha casa são os meus pais e o meu irmão, se eu estiver com eles vou estar sempre em casa”. Viver na Maria do Mar mostrou-nos que tudo o que precisamos para ser felizes é da presença (presente!) uns dos outros.”
É natural pensarmos que existe espaço para o medo quando se abdica de uma forma de vida convencional. Partir para uma aventura sobre rodas, sabendo que o dinheiro não estica e é, ainda assim, fundamental para subsistir num mundo como o nosso, pode ser “arriscado”. Quentin é freelancer e essa condição confere à família alguma liberdade. No entanto, para Sofia e Quentin, as raízes são muito mais emocionais do que materiais – e foram elas a incentivar e não a prender.
“Nenhum de nós sente, jamais, que existe alguma garantia nas nossas vidas, senão o amor incondicional que temos uns pelos outros. Saúde, trabalho, dinheiro, bens materiais, não são nada para além de “bibelôs de vidro”. Podem partir-se a qualquer momento. E por isso sabemos que a “insegurança” existe desde o momento em que nascemos até ao momento que deixamos este mundo. Nada é para sempre, e nós existimos para viver a vida, não para acharmos que podemos controlá-la.”
Além da vontade denunciada de Sofia de dar a conhecer aos filhos os recantos do seu país, a viagem desta família na Maria do Mar serviu um outro propósito: o de provar às crianças a possibilidade real de viver com menos e de, ainda assim, ser e ter mais.
“Não queremos que os miúdos cresçam a achar que vamos sempre ter um frigorífico em casa, ou dinheiro para comprar um bom peixe no mercado, ou uma casa com um quarto só para brincarmos. Um dia vivemos num T5, noutro dia vivemos numa van. Um dia temos uma estante com mais de 200 livros, noutro dia temos de ser nós a imaginar as histórias. Saber viver com menos deveria ser disciplina obrigatória em todas as escolas. E todos os pais deveriam pensar mais seriamente neste assunto. Não adianta dizer “tu nem imaginas a sorte que tens, pensas que todos os meninos têm aquilo que tu tens!?!”, e a seguir ir ao supermercado e comprar mais uma caderneta de cromos, só porque afinal custa apenas 3 euros e o menino pediu.”
Para estes Pais com P Grande [nome da página que Sofia criou para registar as aventuras da família] o mais importante é mesmo que Gabriela e Tiago construam e desenvolvam uma base emocional sólida, que lhes permita uma maior força e carácter perante as adversidades e o inesperado.
“Na nossa perspectiva, sem qualquer pretensão de teorias absolutas, a estabilidade emocional é de facto a que tem toda a importância. Porque é ela que permite aos indivíduos a capacidade de resiliência, de flexibilidade e adaptação, a força e coragem para resolver e dar resposta aos problemas, e encontrar estratégias para ultrapassar obstáculos. Viver muito com pouco, ser mais com menos – sem dúvida valores que queremos continuar a incutir aos nossos filhos.
Queremos que eles sejam pessoas autênticas, abertos para o mundo e para as vivências, e sobretudo que saibam ser gratos por cada migalhinha da vida. A gratidão é a essência da felicidade, e nós queremo-los felizes, como qualquer pai.”
Uma família do mundo
Sofia utiliza a palavra “nómada” para descrever a dinâmica familiar – e, olhando para a linha do tempo, a única coisa que parece manter-se permanente nas suas vidas é uma vontade muito própria de explorar sem deixar de ser, de absorver diferentes culturas e de nelas estabelecer pontes com os outros e as diferenças; para depois, fruto e consequência dessa troca de saberes, descobrirem mais sobre as essências de cada um. No entanto, não renegam as origens. Pelo contrário, preservam-nas e cultivam-nas.
“Tanto eu como o Quentin temos muito orgulho nas nossas origens, e os miúdos estão a crescer com esse orgulho também. Quando alguém pergunta à minha filha qual é a nacionalidade dela, ela responde “sou franco-portuguesa, mas nasci em Inglaterra”. Ela sabe a importância da geografia do coração. O Tiago a mesma coisa, adora dizer às pessoas que fala 3 línguas.”
Portugal, Inglaterra, País de Gales, e agora França. As mudanças são uma constante, mas nunca questionadas ou vistas como um obstáculo: acabam a funcionar como um trampolim para o estímulo de competências sociais e emocionais relevantes e essenciais na construção da personalidade das crianças – que, pela primeira vez, frequentam um regime escolar “tradicional”. Até há pouco tempo, Sofia, que é professora, optou por fazer home schooling; ou, como gosta de lhe chamar, no schooling. A maior vantagem? A liberdade.
“A liberdade para se ser curioso; a liberdade para criar, para imaginar; a liberdade para sermos nós próprios e praticarmos a auto-estima e amor-próprio, e com isso aprendermos a ser seres mais empáticos e resolvidos, com a necessidade permanente de vivermos para o mundo.
A Gabriela sente bastante a diferença entre a forma como aprende agora, e a forma como aprendia anteriormente. No início perguntava-me porque é que para aprender a escrever bem, tinha de fazer tantos ditados, em vez de ler livros de verdade e escrever histórias. Mas até as frustrações são lições, em todos os sentidos.”
A humanidade acima de tudo
Sofia fez do trabalho humanitário uma das bandeiras da sua existência. São várias as temporadas que passa ausente, para ajudar comunidades de refugiados, ou outras que identifique precisarem de auxílio externo, sem permitir que isso abale as estruturas da sua própria casa – pelo contrário, fortalece-as nos valores que, inevitavelmente, transmite através do exemplo.
“O primeiro Natal do Tiago foi passado numa associação na Inglaterra, onde almoçámos com pessoas sem-abrigo. Os meus filhos estão a crescer tendo a noção de que o mundo é muito injusto, mas que eles têm o poder de fazer alguma coisa para trazer alguma justiça ao mundo. Quando eu vou para fora, é claro que todos sofremos, e choramos, e temos muitas saudades. Mas mais importante do que isso, eu estou a mostrar aos meus filhos que dizer-lhes “ajudem quem precisa de ajuda” não é suficiente! Eu tenho de fazer sacrifícios pessoais, deixá-los algumas semanas com o pai, para poder ir ajudar quem precisa.”
Gabriela e Tiago reagem e agem na naturalidade de quem cresceu com estranhos em casa, enriquecidos nessa experiência. Em Inglaterra, foram vários os estudantes de Inglês que a família abrigou debaixo dos seus tectos, e há algum tempo abraçaram em solidariedade Saeed, um refugiado iraquiano que viveu com eles durante 5 meses.
O mais recente projecto de Sofia passa por angariar fundos para o envio de caixas solidárias para as famílias evacuadas da região de Al Ghouta, na Síria. Por detrás da ideia, está uma luta pacífica: a de não naturalizar os problemas dos outros.
“É naturalmente humano ficarmos chocados com as imagens que passam na televisão, chorarmos até, mas depois irmos para a cozinha e pormos a mesa para o jantar como se nada tivesse acontecido. Afinal tudo isto acontece em países tão longe do nosso, e a pessoas tão diferentes de nós.
Não me deixo ficar só pelo choque, passo noites sem dormir a tentar encontrar respostas e tempo para conseguir fazer tudo o que quero fazer, e espero sinceramente, que toda esta vontade minha, faça crescer a vontade deles [dos filhos], em lutarem sempre por aquilo em que acreditam, e a acreditarem que mesmo não podendo resolver os problemas, podem sempre encontrar algumas respostas.”
Saiba mais sobre o projecto e como ajudar Sofia a angariar fundos no fim do texto.
Uma família como as outras
Sofia e Quentin têm o cuidado de não proteger os filhos numa redoma de vidro, permitindo-lhes um contacto precoce e real com a vida e todas as suas camadas. Na relação diária que constroem com Gabriela e Tiago primam pela verdade, pela honestidade e pela franqueza emocional das palavras e das histórias que partilham. Quando viajam, fazem questão de alugar um quarto na casa de pessoas locais, de forma a verem e aprenderem sobre outras formas de existência, adequando o discurso à idade e experiência de vida dos filhos, sem jamais o mascarar.
“Nós somos pessoas com uma mentalidade muito aberta. Eles sabem perfeitamente como é que os bebés são feitos, e a minha filha viu o irmão nascer, tinha ela 3 anos. Quando vemos filmes ou documentários de “crescidos”, explicamos de forma simples mas com verdade aquilo que eles não são ainda capazes de processar.
À hora da refeição, conversamos sobre os mais diversos assuntos. No outro dia a Gabriela perguntou-nos o que aconteceria a ela e ao irmão, se eu e o pai já não gostássemos um do outro, e nos separássemos como muitos dos pais dos amigos dela. E nós simplesmente respondemos (e foi fácil porque é um assunto de que falamos muito entre nós os dois).”
A tecnologia, não estando banida da vida de Gabriela e Tiago, é de acesso limitado – afinal, existem outras coisas “tão mais importantes” do que ipads, consolas e telemóveis. “Sexta-feira à noite fazemos sempre um jantar especial, comemos na sala e vemos um filme. É a nossa forma de celebrar o início do fim-de-semana e de agradecer pela semana que tivemos. E ao sábado e domingo, se estiver um dia de mau tempo, os miúdos adoram ver documentários sobre animais. ”
A natureza é outro dos pontos de equilíbrio da família – ou talvez o principal. “Somos filhos dela [da Mãe Natureza], e um filho nunca pode estar longe da sua mãe. É o nosso habitat natural, o lugar onde somos ainda mais nós!”.
As tarefas em casa são divididas entre todos. Esta gestão promove um convívio mais saudável e uma vida mais equilibrada, além de desenvolver uma consciência de responsabilidade precoce, mas valiosas: cm cada idade houve sempre responsabilidades apropriadas para a fase de desenvolvimento em que estavam.
“Quando gatinhavam, já me ajudavam a colocar a roupa suja na máquina. Hoje em dia são eles que levam o alguidar, despejam os cestos da roupa suja nele, depois separam a roupa clara da roupa escura, e a Gabriela até estende a roupa. Os dois começaram a ajudar a cozinhar desde muito pequeninos e hoje em dia usam as facas da cozinha e preparam os legumes para uma sopa, ou fazem uma salada sozinhos, sem qualquer ajuda.”
Inspiração para uma vida melhor (e mais feliz!)
5 inspirações para a vossa vida em família
– Todos os elementos da natureza;
– Os livros de Osho;
– A liberdade de podermos ser quem quisermos;
– As pessoas boas;
– Sobretudo o amor (o que cura tudo!).
5 músicas para viagens em família
– José González – Heartbeats;
– John Denver – Take Me Home, Country Roads;
– Damien Jurado – Ohio/Sheets;
– Bob Dylan – Blowin’ in the Wind;
– Xavier Rudd – Spirit Bird.
5 lugares para visitar com crianças
País no estrangeiro: Cuba.
Cidade no estrangeiro: Edimburgo.
Portugal: “Tantos lugares maravilhosos que é quase impossível enumerar, mas nós temos a costa alentejana no coração, a Serra de Monchique onde vivemos momentos inesquecíveis quando vivemos na Maria, o Pulo do Lobo e a zona de Mértola, a Fraga da Pena e a zona da Lousã, e claro, Setúbal (a minha cidade) e a maravilhosa Serra da Arrábida. Ah, só mais uma! As aldeias históricas!”
5 livros infantis que todos, pais e filhos, devem ler
– O Principezinho (Antoine Saint- Exupéry);
– O Diário de Anne Frank (Anne Frank);
– Todos do Jean Craighead George;
– Todos do Oliver Jeffs;
– Todos do Roald Dahl.
5 filmes que adoram
– Ma Vie de Courgette;
– The Book of Life;
– Wonder;
– Captain Fantastic;
– Jumanji (o primeiro).
Caixas Solidárias para a Síria
As caixas solidárias contêm bens alimentares básicos como água, pão, farinha, arroz, enlatados, açucar, chá, leite, bolachas, e alguns artigos específicos para cada caso, como medicamentos genéricos, cobertores ou produtos de higiene. Cada caixa tem o custo de 40 euros, e tudo é comprado na Síria.
Saiba mais sobre o projecto na página Pais com P Grande.
Número da conta: 317 10 0010 82-4;
Nome: Sofia Isabel da Costa Vieira;
Banco: Montepio Geral;
IBAN: PT50 0036 0317 9910 0010 8245 0 (para NIB usem este número sem o PT50);
Bic/Swift: MPIOPTPL;
Valor da caixa solidária: 40 euros (no entanto todos os donativos são uma ajuda!).
Podem encontrar a Família Pais com P Grande nos seguintes locais
Gostaram de conhecer a família da Sofia, do Quentin, da Gabriela e do Tiago?
Conheçam todas famílias que nos inspiram!
– Família Tomás My Special Baby
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