O Período: Conversa com Patrícia Lemos - Pumpkin.pt

O Período: Conversa com Patrícia Lemos

Porque é que o período ainda é um tabu? Quando devemos explicá-lo às crianças? Como criar um ambiente menstruo positivo?

Patrícia Lemos é Educadora Menstrual e para a Fertilidade, autora, formadora, ativista e fundadora do Círculo Perfeito, um projeto pioneiro em Portugal para a educação menstrual, manutenção de fertilidade e literacia de corpo.

Em Janeiro de 2020 lançou o seu segundo livro,  Período – Um Guia para Descomplicar, um guia divertido e descomplicado que explica a menstruação timtim por timim. O terceiro livro da Patrícia, Não é só sangue – uma conversa sobre o ciclo menstrual, chegou às livrarias em 2021.

Este é um livro não apenas para meninas e adolescentes mas também para mulheres, para meninos, para pais e mães – todos temos algo a aprender sobre este assunto que, verdade seja dita, nos pertence a todos.

As abobrinhas Leonor e Amelie, a caminho do universo da adolescência, já leram este guia de uma ponta à outra. Está tudo explicado de uma forma apelativa, imparcial e divertida, e com desenhos giríssimos!

Estivemos à conversa com a Patrícia para falar sobre como acompanhar as crianças nesta e outras questões da adolescência, sobre o facto de este ainda ser um tema tabu, sobre a importância de uma relação saudável com o ciclo menstrual e com o corpo, sobre o papel dos pais, sobre as bolsinhas e muito mais. E aprendemos tanto!

Leiam os tópicos principais abaixo e espreitem a entrevista completa no vídeo. Este é um assunto super relevante para que enquanto mulheres e homens, mães e pais, meninas e meninos construamos uma sociedade menstruopositiva.

O que te levou a escrever o livro Período, este super guia para descomplicar?

Tenho um livro publicado desde 2017 sobre este mesmo tema no Reino Unido. Foi publicado para um público muito específico; as coisas no Reino Unido estão, independentemente de tudo, com outro ritmo. Eventualmente consegui apresentar um livro que tem um maior teor artístico, que vive muito de um outro tipo de ilustração, e que fiz com uma ilustradora portuguesa.

Depois, aquilo que senti é que fazia sentido ter um gémeo aqui em Portugal. Mas, claramente, esta diferença em relação ao público exigia que se calhar este livro em Portugal tivesse outro enquadramento.

Tive a sorte de ter uma editora que achou que de facto abrir a questão do ciclo menstrual para algo com um enquadramento na puberdade – porque é aqui supostamente que ele surge, e nesse seguimento fazia todo o sentido. Foi o primeiro livro que foi escrito em Português, em Portugal, sobre o assunto e ainda para mais para este público infanto juvenil (8-14 anos aproximadamente, dependendo da maturidade das crianças).

O livro surge um bocadinho para colmatar esta lacuna que há por um lado no mercado livreiro e por outro na falta de informação sobre os primeiros anos menstruais. Para criar uma plataforma de nova informação disponível para educadores, pais e crianças sobre aquilo que está a acontecer no corpo em tempo real e para reduzir um bocadinho os fatores ansiogénicos à volta dessas idades – há muitas coisas com que lidar!

Ilustração do livro Período, por Mafalda Fernandes

O livro tem este chapéu todo da puberdade: as alterações do corpo, as alterações no cérebro, as questões sociais, as questões do bullying… Tenho tanta gente crescida que comprou este livro, mesmo sem filhos, e que já passou esta fase há 10, 15, 20 anos – e quando me dizem “Que falta que este livro me tinha feito”, fico mesmo contente, porque sinto que continua, então a fazer falta.

Vai ser útil a quem está eventualmente a começar a menstruar ou a entrar na puberdade agora, porque a informação que nós continuamos a ter a circular é informação que está um bocadinho obsoleta, desajustada.

Porque continua o período a ser tabu na sociedade atual?

Acho que continuamos a ter muita vergonha e muito desconforto em tratar isto como um tema de saúde pública. De saúde das meninas e de quem menstrua e estas questões relacionadas com o sexo que vêm sempre acopladas a isto.

Nós continuamos com vergonha de falar sobre sexo – o que não significa que seja difícil encontrar informação sobre masturbação, brinquedos sexuais e essas coisas todas hoje em dia na internet, mas falar sobre a saúde sexual, reprodutiva e ginecológica é uma coisa que habitualmente temos intrincada como se fosse toda uma mesma coisa, e isto faz com que seja muito complicado para nós enquanto mulheres, enquanto pessoas que menstruam, enquanto pais, cada vez que se põe este assunto em cima da mesa, conseguir destrinçar estas coisas.

O ciclo menstrual aos 11, 12, 13 anos não tem que estar diretamente relacionado com a função reprodutora. Aliás, é o facto de nós continuarmos a fazer esta ligação e esta convergência entre uma coisa e a outra que deixa muitas das vezes as raparigas perdidas em termos de referenciação.

“Então mas para que é que isto chega nesta altura? Eu nem sequer quero ser mãe” ou “Se calhar penso nisso lá para os 30 anos, por que raio é que isto aparece com esta antecedência toda?”. Muitas delas ainda nem sequer pensam no seu corpo de forma sexualizada, e portanto aquilo que nós estamos a fazer com a história do “Agora já podes ser mãe” ou do “Tens de ter cuidado” é de repente colocar todo este evento num patamar do qual elas conseguem tirar zero em termos de utilidade.

E portanto precisamos de re-significar um bocadinho isto – Então para que é que serve o período? O período serve para te dizer que tu estás saudável e que há coisas a mudar no teu corpo, da mesma maneira que os dentes de leite te caíram e tu agora tens uns mais fortes.

Ou seja, o corpo evolui, passa por várias etapas! E esta é uma etapa muito importante e muito visível, e é daqui que vem a importância de ajudarmos principalmente as mulheres a fazerem as pazes com o seu corpo. O teu corpo não é um limão, ele não está contra ti e isto não acontece só para te lixar as idas à praia.

Com que idade achas que se deve começar a falar com as crianças sobre o ciclo menstrual e sobre o período?

Costumo dizer que o ciclo menstrual, fazendo parte da vida das mães e do agregado familiar é uma coisa que, quando calhar pode ser uma conversa ajustada à idade ou à capacidade de compreender que as crianças têm.

Não precisamos de entrar em grandes detalhes, mas é importante ter em atenção não cair em explicações como “isto é um dói-dói que a mãe tem”. Isto cria uma ansiedade tremenda nas crianças. Elas sabem que se caem, esfolam um joelho e estão a deitar sangue, isso não é uma coisa boa. Portanto estas explicações são uma preocupação extra que criamos nas crianças, uma ansiedade que lhes pomos em cima de que a mãe não está bem de saúde.

Sendo que este sangue, como muito se diz na comunidade menstrual, é o único sangue que não é fruto de doença nem de violência – e ainda assim é aquele sobre o qual temos mais dificuldade em falar. Então precisamos muito de enquadrar isto de uma forma normal.

Da mesma forma que se a mãe estiver maldisposta e estiver com uma indigestão ou tiver comido uma coisa estragada e precisar de vomitar. “Então mas isto não é a mesma coisa que uma indigestão.” – na verdade é: é uma função fisiológica, quando está tudo bem é assintomática, serve para imensas coisas, o corpo que nasce com útero e com ovários faz isto durante o seu processo de maturação e depois da idade adulta…

Obviamente se uma criança tiver 5 ou 8 anos a informação que lhe dás terá de ter uma linguagem diferente, de acordo com o que ela consegue compreender. Mas as crianças são tão curiosas que habitualmente dão-nos essas pistas! Lembro-me de uma vez estar na casa de banho e de a minha filha estar comigo; eu estava a mudar o meu disco menstrual e a lavá-lo no bidé. A minha filha sempre gostou muito de coisas artísticas, e a determinada altura diz “Ó mãe, que bonito, o que é? Parece uma aguarela.” Sabes?

Então temos esta possibilidade de dar um enquadramento ao nível da saúde. As crianças são uma tábua rasa e somos nós que construímos o entendimento delas. Eu dizer “isto é uma coisa que acontece à mãe todos os meses porque a mãe é crescida e isto ajuda-me a perceber se a mãe está de saúde, se está a dormir ou a beber água suficiente…” ou dizer “isto é um dói-dói que a mãe tem no pipi” são coisas muito distintas.

Se calhar viram as costas, ficam tranquilas e a conversa acaba ali, se calhar vão querer saber mais coisas. E eu acho que depois temos de deixar que sejam eles a trazer as perguntas, a guiar – isto é válido para os rapazes e para as raparigas.

Para as mães de meninos, é importante falar com eles sobre este tema?

Super importante. Esta é uma das coisas de que eu falo no livro – acho que uma das nossas maiores preocupações, mesmo quando já somos adultas, em relação ao período, é sujarmo-nos e sermos vistas sujas.

Principalmente durante a adolescência, em que as dinâmicas entre pares são por vezes muito agressivas (questões do corpo, auto estima, dinâmicas sociais), há sempre alguém que tem um percalço, há sempre uma menina que fica com as calças sujas, e o grande problema é os rapazes gozarem. Dizerem que cheirava mal, que ela era pouco asseada…

Portanto este assunto não é só de mulheres nem de mães de raparigas – este é um assunto de toda a gente. Porque se as nossas filhas continuam a ter vergonha de se sujar, então temos de educar os rapazes para poderem criar um espaço de integração deste percalço.

Da mesma forma que se eles estiverem a comer um cachorro e se sujarem com um bocado de maionese ou mostarda não vamos dizer que ele é porco e não sabe comer – até pode ser comentado, mas não vai ser da mesma forma porque não está associado ao estigma e ao tabu das questões da sexualidade.

Facilmente a rapariga que ficou com as calças sujas vai criar um trauma enorme e nunca mais vai querer menstruar na vida. E o grande problema dos traumas com o período é que isto facilmente evolui para uma vergonha do corpo, para uma relação de ódio com ele, com esta coisa que vem só para te chatear e para te fazer passar vergonhas.

Isto pode levar a uma vergonha dos genitais e a uma vida sexual pouco liberta. Por isso, importa começar a desconstruir tudo isto para que as mulheres crescidas de amanhã possam ter uma relação com o corpo distinta daquela que temos visto as mulheres portuguesas desenvolver nos últimos 30 anos.

Pegando nesta questão do trauma, como é que a relação das meninas com o corpo pode vir a prejudicar a saúde delas quando crescidas?

Aquilo que nós sabemos é que se uma mulher não está confortável com o seu corpo e desenvolve estas dinâmicas de vergonha, ela vai tentar protelar ao máximo uma ida ao ginecologista, ainda que tenha sintomas.

De repente, se tens uma alteração e as secreções vêm mais amareladas ou mais tipo requeijão – tudo sintomas de que algo não está bem com a tua saúde vaginal – assumes aquilo como sendo uma coisa que está errada com o teu corpo. Mas como o teu corpo está sempre errado, e é tudo mau e é tudo nojento, tu nem interpretas aquilo como um sintoma e uma necessidade de recorreres a um médico para te cuidares.

Então, não é só o problema destes enquadramentos ao nível da sexualidade, mas também ao nível da vivência da saúde. Acabas por te silenciar, por ter vergonha e por não recorrer a um médico porque achas que aquilo é teu.

Como podemos, então, criar crianças mais menstruopositivas, que aceitem o período e o ciclo menstrual? Faz sentido celebrar esta transição? Como podemos envolver o pai?

Ilustração do livro Período, por Mafalda Fernandes

Antes de mais, sublinhar que o período é útil desde que aparece: é útil porque dá pistas sobre a saúde destas crianças. Enquanto pais, temos pistas imediatas sobre aquilo que se passa com a saúde das nossas filhas ou das crianças que menstruam e estão connosco.

Incluir os pais é sempre uma coisa curiosa – vai depender muito da relação que tens com o teu período e da relação que tens com o teu par, se este par for uma pessoa que não menstrua; neste caso, se for um homem. Aquilo que vamos tentar fazer é garantir este chapéu da saúde a todos os níveis. Ou seja, isto é uma informação que podes usar em tempo real para poderes fazer melhores escolhas.

Em relação à celebração, agora que estamos na era da parentalidade positiva, eu diria que faz sentido, mais uma vez, ouvirmos as crianças. Há muitas pessoas a fazer festas de período, principalmente nos Estados Unidos, onde é um negócio de milhares de euros… Mas acho que temos de perguntar a quem menstrua: queres celebrar isto?

“A mãe está super feliz porque isto significa que estás saudável e é uma coisa boa.” e “O que é que tu queres fazer com isto? Queres celebrar? Queres fazer isto só entre nós? Podemos contar a outras pessoas?”.

Muitas das vezes colocamos o corpo das raparigas sob escrutínio público sem lhes pedir autorização. Não fazemos isso por mal, mas às vezes também contribui para um certo desconforto. “Eu não sei o que é que me está a acontecer e a minha mãe está com um megafone a ligar a toda a gente e a dizer A minha filha já é uma mulher!”.

Faz sentido ter uma bolsinha do período, envolvê-las na preparação e explicar o que faz parte?

Curiosamente, muitas vezes são as miúdas que trazem o tópico da bolsinha para casa, quando não foram as primeiras a menstruar. Quando elas trazem esta questão para casa, nós podemos fazer o gancho. Mais uma vez, perguntar-lhes o que é que querem ter consigo. Se querem ter uma bolsa, se querem ter só um penso, se querem ter toalhitas ou um par de cuecas extra. Muitas delas não vão querer tampões ou outros métodos de recolha interna, porque ainda não há uma perceção interna do corpo.

Precisamos também de criar ambientes mais menstruopositivos. Precisamos de garantir que nas escolas facilmente as crianças conseguem aceder a este tipo de ajuda, que há pensos distribuídos, que há pensos com os auxiliares e que é fácil chegar a eles. Quero acreditar que dentro de alguns anos não vamos precisar de bolsinhas para nada porque facilmente as crianças têm acesso a tudo isto na escola.

E quando elas são as primeiras a menstruar? Qual a idade em que acontece e como lidar quando acontece mais cedo?

Sabemos que a idade da primeira menstruação tem vindo a regredir ao longo dos anos. Isto deve-se ao grau de nutrição a que conseguimos aceder hoje e que não tínhamos antigamente, entre outros fatores.

O quadro é complexo, mas há duas coisas que podemos distinguir: por um lado, os quadros de puberdade precoce, que devem discutidas com um pediatra e eventualmente encaminhadas para um endocrinologista, há questões ao nível de uma patologia que pode ser endereçada de forma farmacológica para travar esse processo.

Depois temos as outras situações, das crianças que estão na franja da idade mínima de menstruação que será, por exemplo, os 9-10 anos (atualmente a idade média em Portugal ronda os 12 anos).

Ilustração do livro Período, por Mafalda Fernandes

Enquanto pais, nestas situações devemos ter em atenção que muitas das vezes as raparigas não estão preparadas para gerir ou lidar em termos psicoemocionais com todas as transformações que acontecem no seu corpo e que são postas em praça pública, em questões sociais, comentários, olhares alheios na rua devido ao desenvolvimento do corpo. Estas situações têm de ser acauteladas pelos pais – tentar perceber se elas estão a lidar bem com isso e dar o melhor enquadramento possível.

Precisamos todos, enquanto sociedade, de tirar o corpo das raparigas do escrutínio público e deixar de comentar o tamanho das maminhas delas, e que elas estão muito bonitas e que com certeza os rapazes agora só olham… porque tudo isso vai validar os comentários que vêm de gente que elas não conhecem sobre o corpo delas.

Há também uma parte no livro que fala precisamente disto: eventualmente o teu corpo vai chamar a atenção de outras pessoas, mas há limites para isto, e és tu que os traças. Se não consegues sozinha, pede ajuda a um adulto. – isto é mesmo crucial e os pais precisam de estar atentos.

Como ajudar as meninas a gerir as alterações emocionais?

Temos de perceber que num cérebro adolescente estão a acontecer mil coisas ao mesmo tempo.

A professora Maria do Céu Machado tem uma frase em que diz “A adolescência é a fase em que os pais se tornam difíceis”. Eu adoro esta frase! Porque põe a responsabilidade em quem tem de a ter.

Se há alguém que tem recursos e possibilidades de ter um enquadramento diferente do que está a acontecer com elas, são os pais.

Nós queremos muito que um adolescente seja um mini adulto, e não é isto que acontece. Então, nós temos de perceber que muitas das vezes é fácil haver aquilo a que nós chamamos as disposições de humor a alterarem-se, é uma carga elétrica, quase uma trovoada, naquela cabeça! Temos de ficar atentos se os nossos filhos entrarem nestes processos e não conseguirem sair deles.

Ou seja, os mood swings que tanto recriminamos (“Quando estás com os teus amigos estás contente e comigo estás sempre de má cara”), são muito comuns nos adolescentes. É normal que eles flutuem. Isto é uma espécie de montanha russa também para eles, tem que ver com o que está a acontecer no cérebro deles. Enquanto cuidadores, temos de dar tempo e enquadramento e não recriminar.

Os grandes sinais de alerta são quando nós sentimos que estes baixos são só baixos. Ou seja, quando as/os adolescentes estão super deprimidos, quando se isolam, quando têm respostas que são formas incapacitantes de eles gerirem essa parte emocional.

Nestes casos, precisamos de procurar ajuda. Falar com o pediatra, pedir uma referenciação para um psicólogo para percebermos que ajuda pode ser dada aos nossos filhos. O facto de as crianças estarem numa situação em que precisem de ajuda não faz de nós maus pais!


Muito agradecemos à Patrícia o tempo e a amabilidade que dedicou às nossas perguntas.

Para acompanharem os projetos da Patrícia Lemos, espreitem o site Círculo Perfeito e sigam as páginas de Facebook e Instagram.

Nesta comunidade em que se fala sobre o período sem tabus, vão encontrar artigos e recursos úteis relacionados com a saúde menstrual – e não só. Podem também marcar sessões de saúde menstrualmonitorização de ciclo e fertilidade com a Patrícia 🙂

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