O consentimento é um conceito complexo, quer para as crianças quer para as pessoas adultas. Saibam como podemos ensinar o “consentimento” às crianças de forma a que o possam interiorizar.
Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
Neste artigo, Ângelo Fernandes partilha connosco como podemos ensinar o “consentimento” às crianças.
O consentimento é um conceito complexo, quer para as crianças quer para as pessoas adultas, e é exatamente por essa razão que é importante desenvolver, desde cedo, as suas bases. Por esse motivo, antes de chegarmos ao consentimento propriamente dito, sugiro que os pais e mães comecem por usar as noções de permissão e autorização, recorrendo a exemplos do dia-a-dia como os próprios brinquedos e atividades das crianças.
Imagine que faz parte da rotina familiar receber os primos durante o fim-de-semana. Um dos primos pede autorização para brincar com os patins, que lhe é concedida, mas pouco depois já tem a viola nas mãos e de seguida também já se apropriou do tablet.
Costumo dar este exemplo aos pais e às mães, explicando que é importante esclarecer que a permissão para brincar com os patins, não se estende à viola ou aos outros brinquedos. Ou seja, é importante desenvolver a consciência de que a permissão ou autorização (no fundo as bases do consentimento) são para atos específicos e têm limites.
Se o primo quiser brincar com outros brinquedos, terá de pedir autorização para cada brinquedo. Ter permissão para brincar com os patins não significa que possa brincar com todos os brinquedos.
Imaginemos outra situação em que um dos primos pergunta se pode jogar consola, pois é habitual jogarem juntos todos os sábados.
No entanto, a determinada altura o primo deixa de pedir autorização e, assim que chega a casa dos tios, assume que pode ir diretamente para o quarto para jogar.
Este é outro exemplo de como o consentimento, sob a forma de autorização, não passa a ser perpétuo ou garantido por uma questão de hábito ou por haver um histórico de permissão para uma determinada atividade.
Lembre à criança que deve sempre pedir autorização, independentemente das circunstâncias atuais ou passadas, e que deve esperar o mesmo dos outros.
São conceitos que trazem diversos desafios, e o quotidiano irá apresentar situações que nem sempre são fáceis de explicar ou para a criança compreender. Por exemplo, querer brincar à apanhada, não é o mesmo do que concordar em brincar ao wrestling. São duas atividades distintas e é benéfico para a criança entender que nem todas as brincadeiras são iguais e que querer ou consentir brincar a uma coisa não é o mesmo para outra.
Se tiver interesse em saber mais sobre consentimento e prevenção da violência sexualcontra crianças consulte o livro De que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças de Ângelo Fernandes.
Este é um guia de prevenção com orientações para mães, pais e pessoas cuidadoras.
“Queres brincar comigo?”
Uma vez que as crianças podem perguntar apenas: «queres brincar comigo?», esta questão pode abranger um vasto leque de atividades, dando azo à ideia de consentimento generalizado onde «vale tudo».
Assim, é importante explicar que nem todas as brincadeiras são iguais e que a criança deve respeitar e também ser respeitada quando não gosta de determinada atividade.
Use exemplos do quotidiano da criança e a inversão de papéis para trabalhar a importância de saber respeitar quando alguém diz que sim ou não em determinadas situações e, claro, esperar o mesmo dos outros. Reforce essa necessidade nas diferentes dimensões da sua vida, não só nos momentos mais recreativos e lúdicos.
Com o tempo, o pai e a mãe podem alargar o conceito para outras áreas, nomeadamente para respeitar a vontade em geral ou para as questões do toque no corpo.
Com o desenvolvimento da criança também é importante trabalhar as ambiguidades que vão naturalmente surgindo, como compreender o silêncio ou a ausência do «sim». Por vezes podemos ouvir uma criança retorquir algo como: «quem cala consente» ou «mas ela não disse que não» como forma de justificar ter feito algo sem autorização.
Nestes casos penso que seja positivo pedir à criança que inverta os papéis, para a ajudar a compreender que a ausência do «não» não implica necessariamente um «sim» nem pressupõe alguma forma de consentimento.
De forma resumida:
- Use os pedidos de permissão e autorização para trabalhar as bases do consentimento.
- Recorra a exemplos do dia-a-dia, como os brinquedos e atividades da criança.
- Incite ao respeito pelo «sim» e pelo «não» e pela sua vontade do outro.
- À medida que a criança cresce, ajude-a a compreender que o silêncio e a ausência do «sim» não representam consentimento.
- Lembre à criança que deve sempre pedir autorização, independentemente das circunstâncias atuais ou passadas, e que deve esperar o mesmo dos outros.
- Ter permissão para brincar a algo não significa que a criança queira brincar a outra atividade.
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