Saber olhar para o lado - A propósito do que é ser Solidário - Pumpkin.pt

Saber olhar para o lado – A propósito do que é ser Solidário

Saber olhar para o lado - A propósito do que é ser Solidário

Não sei quem vive ao meu lado.

Não sei quem vive no andar de cima.

Os meus pais também não.

Dizem que é perigoso falar com estranhos, que não nos devemos meter na vida dos outros. Pode ser chato ou dar trabalho.

E eu vejo sempre o miúdo que vive no rés-do-chão a brincar sozinho no quintal, a chutar a bola contra a parede. Às vezes, fica deitado no chão, a olhar cá para cima… Ou para o céu, ou para dentro da cabeça dele, para os pensamentos que são só dele, não sei. O miúdo chuta mal e nunca ata os sapatos, já reparei. Gostava de poder ajudá-lo, mas não o conheço. E seria estranho falar com ele sem o conhecer, além de que a minha mãe me diz para sair da janela, para ir ver televisão.

Na minha rua vive tanta gente, uns em casas, outros até na rua. Vejo-os todos os dias. Acho que os devia cumprimentar, saber mais sobre eles, perguntar se precisam de ajuda, mas os meus pais dizem-me para me apressar, que tenho os trabalhos de casa estão por fazer… Dizem-me que não os conhecemos e que não faz sentido conversarmos com quem não conhecemos. E se um dia não tivermos mais ninguém? E se eles precisam de nós?

Os dias foram passando, os vizinhos também. Uns continuam lá no prédio.

Um dia fomos nós que nos mudámos; no prédio seguinte, até poderiam morar as mesmas pessoas. Era indiferente, porque nós nunca falávamos com elas. E se precisam de nós? E se um dia nós estamos aflitos e não conhecemos quem nos pode acudir? Um dia, ainda pequeno, não conseguia parar de pensar nisso. Entrei no elevador com a minha mãe e com a D. Irene, a vizinha do terceiro andar. Naquele dia, no elevador, era só a vizinha, nem sabia de que piso; sabia só que tinha cara de vizinha. Mais uma vez, fomos calados no elevador e vi que a D. Irene tinha estado a chorar. Não conseguia parar de olhar para ela e pensar no que poderia ter provocado aquela cara de choro. Pensei que talvez tivesse de ir fazer o jantar e não lhe apetecesse ou que, se calhar, o chefe tinha ralhado com ela ou, até, que os filhos estariam a ter más notas na escola. A minha mãe também viu, mas olhou rapidamente para as cartas que trouxera da caixa do correio nesse dia.

Perguntei à minha mãe o porquê da cara de choro da vizinha e ela disse-me para ir brincar; que não sabíamos nem nos devíamos intrometer na vida dos outros.

Nesse dia, percebi que era solidário. Ou, pelo menos, que o queria ser. Não sabia que era solidário; só sabia que não queria chorar e estar sozinho, sem os meus pais. Queria que, se me vissem chorar, me ajudassem. E se eu me perdesse? Como seria? Chorava e ninguém viria socorrer-me?

Peguei no bloco de folhas com animais, de que tanto gostava, e escrevi cartas a todos os vizinhos. Escrevi para me apresentar, o vizinho do segundo esquerdo, o João Sequeira, de nove anos. Contei-lhes que era bom a cortar com a tesoura pelo risco, sem falhas, que corria muito rápido e que sabia atar os atacadores. Que também sabia dobrar meias e pôr a mesa. Acrescentei que sabia ir sozinho no elevador, desde que os meus pais me autorizassem. Contei-lhes que tinha medo de andar no escuro e que não gostava de ver televisão ou ouvir música com o som muito alto.

No final, disse-lhes o que realmente queria: se precisassem de mim, eu estava mesmo ali, à distância de uma viagem de elevador ou de uma descida ou subida de escadas.

 

Este texto foi-nos gentilmente cedido por Rita Castanheira Alves, Psicóloga Clínica infanto-juvenil e de aconselhamento parental, e foi originalmente incluído no livro para pais da autora “A Psicóloga dos Miúdos – Guia prático para todos os pais”.

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