O direito a estar triste por Mário Cordeiro
Há muito gente que desejaria que vivêssemos num mundo de “patetas alegres”, onde as pessoas andassem sempre de sorriso rasgado de orelha a orelha, a dizer larachas e graças de terceira categoria, mesmo que não lhes apetecesse, mesmo que essa expressão fosse contra os seus sentimentos.
E porquê? Porquê estar sempre “alegre”? Com medo da depressão, é? Como se alegria fosse sinónimo de felicidade ou condição para se atingir esta última, ou como se a tristeza desembocasse sempre na depressão ou no suicídio.
Estar triste é um direito. Um direito tão natural e tão desejável como estar alegre. Os sentimentos são isso mesmo – sentir. E sentir é ver o mundo e os outros umas vezes de um modo mais optimista, outras mais pessimista, umas vezes de forma mais positiva, outras menos. Estar triste é muitas vezes estar. Simplesmente estar. Sem se saber porquê e sem se querer saber porquê… até porque muitos sentimentos não se explicam, apenas existem enquanto tal.
A confusão entre alegria e felicidade
Toda, ou pelo menos quase toda a gente deseja a felicidade. Para si e para os outros. Só nos ficam bem esses sentimentos. No entanto, não podemos cair no erro de confundir felicidade com alegria. Pode ser-se extremamente feliz estando triste. Mais, há muitas ocasiões em que nos sentimos bastante melhor com nós próprios e com os outros estando tristes. Por vezes muito tristes. E uma coisa é a tristeza e outra a infelicidade ou a depressão, essas sim, a evitar a todo o custo.
Tristeza e alegria pertencem à escala de sentimentos e de estados de alma, não havendo propriamente uma divisão radical entre ambas. Quantas vezes a maior das alegrias não é tão grande que roça a tristeza, tantas as vezes a tristeza se insinua nas nossas almas tornando-se bem-estar e tranquilidade. Tudo depende das alturas, dos momentos, das razões. O humor é isso mesmo. A vida é isso mesmo.
Tristeza como alavanca da criatividade
É bem sabido que os grandes criativos, no domínio da literatura, das artes, da ciência, tiveram e têm as suas fases de maior produtividade nos dias em que se sentiam ou sentem tristes. Muito mais, seguramente, do que quando andavam bem-dispostos – a tristeza traz consigo a reflexão, a interiorização, o estar-se tranquilamente consigo próprio. A alegria é mais expansiva, mais comunicativa, mas também mais partilhada, menos pessoal. Estar triste é algo de bom, de “gostoso”, um estado de alma que saboreamos a cada momento, devagarinho, com prazer, como um momento nosso e só nosso, enigmático, ao qual os outros não têm acesso.
Enquanto a alegria e o bem-estar são endorfínicos, ou seja, convidam ao gozar o momento e ao “não mexer uma palha” (pois se tudo está bem…), a tristeza e adrenalínica, motivando inconformismo e acção.
A alternância de estados de espírito
Não será desejável estar sempre triste. A tristeza temperada com a alegria (e também, embora menos, com situações de perfeita “neutralidade” de sentimentos) constrói o equilíbrio interno e externo de que tanto precisamos e que nos permite gerir de forma adequada a adversidade e o stresse, bem como os estímulos positivos e o contentamento. Uma boa balança é a que pode pender para um lado ou para o outro e não apenas a que se verga para a esquerda ou para a direita.
Alternar os estados de espírito é, assim, fundamental. Há que reconhecer esse direito como um dos direitos fundamentais da pessoa. Poderá corresponder à maior boa vontade dos outros tentarem animar-nos e consolar-nos – é o seu papel -, mas terão que compreender que às vezes apetece-nos estar tristes e que forçar a alegria só nos irá provocar sofrimento e desconforto. Repito, não somos patetas alegres, para andar sempre com um sorriso debaixo do braço ou escondido no bolso.
A tristeza e as crianças e adolescentes
As crianças e os adolescentes são pessoas que sabem melhor do que ninguém modelar estes estados de alma e aprender a sua gestão é um importante factor de crescimento, responsabilização, conhecimento do “eu” e também de criatividade. Quantos de vós não terão escrito poemas ou ensaios, geralmente como resposta à mais profunda das tristezas? Ou pintado quadros e telas, feito desenhos ou esboçado esculturas… ou tão simplesmente passeado num dia de chuva, ou ao sol da Primavera junto a um riacho, através de um bosque, de uma avenida, ou simplesmente deitados em cima da cama deixando-nos embalar por uma infinita tristeza de que gostamos e que nos conforta, que nos acaricia da mesma maneira que as mãos da mãe ou as palavras generosas de um amigo? Quantos de nós não nos conhecemos melhor por termos tido esses momentos?
É claro que não é bom a depressão. Mas depressão e tristeza são coisas diferentes. Num vasto estudo que efectuámos recentemente, 25% das raparigas e 14% dos rapazes do 9º ano da escolaridade referiam estar tristes, (diferença esta entre os sexos que era altamente significativa) – e nem todos estavam (felizmente!) deprimidos ou à beira do suicídio. Estar triste é vulgar, normal e desejável. Tão vulgar, normal e desejável como estar alegre. A vida não tem apenas uma faceta e a complementariedade dos diversos matizes de sentimentos é que nos faz e refaz a cada momento. Estar triste é assim um direito sagrado!
Pais, professores, adultos: deixem as crianças e os adolescentes estar tristes. Tentem obviamente detectar sinais de depressão, situação em que urge intervir pois da qual é mais difícil sair e que, ao contrário da tristeza, é paralisante pode conduzir à inércia e à auto-destruição. Estejam atentos a isso, mas se não for o caso, deixem os vossos filhos, alunos e conhecidos estar por vezes tristes. Respeitem esse sentimento. Não tem nada a ver com estar zangado, ser-se malcriado ou andar de cara “amarrada”.
Se estar triste não fosse tão bom, o maior júbilo não nos deixaria um travo tão saboroso de nostalgia, não é? Quem nunca chorou de alegria?
Mário Cordeiro
Mário Cordeiro, doutorado em pediatria, foi professor de Saúde Pública na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e membro da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da British Association for Community Child Health. É membro e consultor de diversas organizações de pais e familiares de crianças com doença crónica.
Mário Cordeiro foi presidente da European Society for Social Pediatrics e da secção de Pediatria Social e Comunitária da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Foi membro da Comissão Nacional da Mulher e da Criança, da Comissão Nacional dos Direitos da Criança e da Comissão para as Boas Práticas em Lares de Crianças, tendo representado o país em diversos comités especializados da União Europeia e trabalhado com o governo do Reino Unido na elaboração de programas de promoção da saúde e na execução do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil. Dirigiu o Observatório Nacional de Saúde e fundou a Associação para a Promoção da Segurança Infantil e a Associação pela Saúde dos Adolescentes, intervindo regularmente em
prol dos direitos das crianças, enquanto pessoas e cidadãos. Associando à sua vasta formação pediátrica, conhecimentos nas áreas da Psicologia e da Sociologia e Antropologia, Mário Cordeiro é autor dos livros O Grande Livro do Bebé (10.ª edição), O Livro da Criança (7ª edição), O Grande Livro do Adolescente, Dormir Tranquilo (3.ª edição), O Grande Livro dos Medos e das Birras (3.ª edição) e 1333 Perguntas para Fazer ao Seu Pediatra publicados pela Esfera dos Livros. É pai de cinco filhos.
Editou em Setembro de 2014 o livro Educar com Amor: «Educar exige amor, respeito, tolerância, exige (uff, tanta coisa!) saber quem são os nossos filhos, o que esperam de nós e nós deles, quais os comportamentos esperados e esperáveis, mas principalmente um fio condutor lógico, sensível, repleto de amor.» In Introdução
Educar é um ato de amor e uma das tarefas mais exigentes com que os pais se deparam. Devo castigar? Estou a mimar demais o meu filho? As regras em excesso são positivas? Como devo impor limites à minha filha? Que valores devo transmitir aos meus filhos? Que tipo de ser humano estou a criar? Somos assaltados diariamente por dúvidas sobre como devemos agir no nosso papel de pais. Mário Cordeiro, o pediatra mais lido em Portugal, recorrendo a casos práticos e à sua longa experiência profissional, explica-nos que educar é a maior prova de amor que os pais podem dar a um filho. Educar implica impor regras, pautas definidas, objetivos claros, deixando sempre espaço para o carinho, o afeto, os sentimentos, mas também para a imaginação e a fantasia, o génio humano, as especificidades de cada um dos nossos filhos. Porque os filhos não são o nosso livro, são o livro deles, escrito por eles com crescente liberdade criativa.
– Como ensinar os nossos filhos a lidar com os seus sentimentos?
– Como ajudá-los a enfrentar os problemas do dia a dia? – Qual a melhor forma de lhes transmitir valores e qualidades humanas que os tornarão adultos mais fortes?
– Como construir uma autoestima forte? Para este pediatra, pai de 5 filhos, os pais são o melhor exemplo para os filhos e é para eles que as crianças olharão sempre que quiserem aprender. Educar é por isso uma construção conjunta, feita lado a lado, partilhada todos os dias, de mãos dadas. Uma criança que se sente amada é uma criança que se sente segura e com coragem para enfrentar o mundo.
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