Questões Trans, Educação e Sociedade: Conversa com T Guys Cuddle Too - Pumpkin.pt

Questões Trans, Educação e Sociedade: Conversa com T Guys Cuddle Too

Descomplicando com honestidade e humor, o Ary e o Isaac têm como missão fazer-nos repensar o género e a identidade. Conheçam os T Guys Cuddle Too!

Que conceções erradas temos sobre as questões de género e identidade? Porque é que repensá-las pode beneficiar as nossas crianças, independentemente de como elas se identificam? O que é que a sociedade deveria saber para acolher corretamente as pessoas trans?

Estivémos à conversa com o Ary Zara e com o Isaac dos Santos, que dão vida ao projeto T Guys Cuddle Too. É bem possível que as vossas abobrinhas já tenham passado por algum vídeo deles: esta dupla produz conteúdos educativos gratuitos online que se destinam a fazer-nos repensar padrões, nomeadamente relacionados com as questões trans.

Porque os T Guys Cuddle Too têm muito para partilhar e ensinar, fomos conversar com eles. Nesta conversa, damos voz à sua expertise, experiência e empatia e procuramos compreender algumas questões que também podem ser as vossas. Fiquem desse lado!

Como começou o vosso projeto? O que vos levou a criá-lo?

Ary: Este projeto começou em 2019, e começou um pouco porque eu conheci o Isaac por intermediário de uma amiga, e na altura comentámos um com o outro que fazia falta existir conteúdo sobre a transição, porque tanto ele como eu tinhamos feito a nossa transição um pouco através do Google. Ver como é que se fazia aqui, como é que se fazia ali… Depois falas com este aqui em Portugal, falas com o outro, com a outra, e a mensagem vai passando de pessoa em pessoa.

Mas não havia propriamente um sítio onde nós pudéssemos esclarecer as nossas dúvidas. E então decidimos criar este canal, que iria ser aquele apoio que nós queríamos ter tido durante a transição. Mas as coisas acabaram por tomar um rumo um pouco diferente, não é, Isaac?

Nós percebemos que afinal o nosso público alvo não estava a ser as pessoas trans, apesar de ser essa a nossa ideia, mas sim professores, educadores, pais, famílias… Do nada os nossos vídeos começaram a ser utilizados em aulas!

ISAAC D’ORPHEU

Isaac: Completamente, nós percebemos que afinal o nosso público alvo não estava a ser as pessoas trans, apesar de ser essa a nossa ideia, mas sim professores, educadores, pais, famílias… Do nada os nossos vídeos começaram a ser utilizados em aulas! E acho que o ponto de viragem para nós foi mesmo quando fomos convidados pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica para dar uma aula numa pós-graduação e nós percebemos “Ok, é real, não podemos mais negar, o nosso conteúdo é sério e temos de repensar a forma como estamos a gravar!”.

Então, deixámos de gravar com o intuito de “quem nos está a ver são pessoas trans” e passámos a gravar com o intuito de qualquer pessoa que chegue aos nossos vídeos tem de perceber tudo, simples, fácil e rápido. E esse passou a ser o nosso mantra para gravar.

Ao contrário do que se possa pensar, o vosso trabalho não se foca apenas em falar para a comunidade LGBT+. Podem falar-nos um pouco sobre esta missão de educar e informar as pessoas sobre estas questões, sobre os desafios e sobre as conquistas que dela têm resultado?

Foto: Instagram

Ary: Eu sinto que cada vez que nós avançamos, também cresce um pouco mais a responsabilidade. E, nesse sentido, o trabalho torna-se um pouco difícil porque damos por nós a avaliar cada palavra. Porque facilmente a coisa se pode virar contra nós, nós dizemos uma coisa, sai do contexto, cai mal e de repente estamos a ser super mal interpretados.

Essa é uma preocupação que eu sinto que nós temos cada vez mais e que de alguma forma também nos trava um pouco a nível criativo ou de piadas (porque às vezes só conseguimos dizer as coisas a brincar). Nesse sentido, a responsabilidade trava-nos um pouco, mas acho que é algo que iria sempre acontecer à medida que o projeto ganha uma dimensão maior.

Isaac: Acho que o nosso público tem vindo a crescer, e com o crescer também tem vindo a alargar. E um dos nossos maiores desafios neste momento é sem dúvida o gravar, não só o que gravar -porque há montes de coisas que hoje olhamos para trás e pensamos que deveríamos regravar, porque abordaríamos de uma forma completamente diferente – como também a questão das piadas – porque especialmente eu sou “cada tiro, cada melro”, piadas a torto e a direito.

Outro desafio tem sido que antes as pessoas pediam-nos para falarmos da nossa história e da nossa vida, especialmente eu, que já era ativista antes do canal, e do nada as pessoas pedem-nos para falar sobre uma panóplia de assuntos. É muito fácil quando falamos sobre nós, porque esta é a nossa verdade, a nossa vida. Agora, quando nós temos de começar a opinar sobre uma quantidade de assuntos, as coisas já têm um ponto de viragem um bocadinho diferente.

Ary: Sim, e acho que o exercício atualmente vai mais no sentido de sairmos da nossa esfera. Ou seja, nós sairmos daquele sítio onde todas as pessoas com quem falamos concordam connosco e sabem do que estamos a falar. Isto dá a sensação de que vivemos num mundo um pouco à nossa imagem, e isso acaba por não ser completamente verdade.

Então estamos agora a fazer esse caminho: sair um pouco da nossa esfera e tentar entrar noutras esferas onde este assunto também tem de ser falado e abordado, e se calhar é onde faz mais sentido ele surgir porque é onde está mais invisível.

Isaac: Sim, e em vez de falarmos tanto com ativistas e influenciadores da comunidade LGBT começámos a falar mais com pessoas de fora, deixarmos de estar sempre nas mesmas associações que sejam ou tenham conexões LGBT e começarmos a sair mais para projetos como a Pumpkin, por exemplo… Isso é a nossa meta, e no futuro é para aí que nos queremos dirigir.

O que é que vos espanta mais pela positiva nas recompensas que vêm deste projeto?

Foto: Instagram

Isaac: Provavelmente a questão dos professores, do quanto o nosso conteúdo é utilizado por professores. Foi, por exemplo, nós encontrarmos o nosso conteúdo como um dos materiais aos quais os professores devem recorrer para as aulas de cidadania. Não que eu não achasse que nós temos essa capacidade, mas sim por ter essa validação que vem de um sítio tão de cima e que pode ser tão quadrado e tão conservador.

Ary: Acho que disseste tudo! Começámos este projeto de uma forma muito tranquila e ele atualmente tem uma face muito séria. Lembro que há questão de duas semanas informaram-nos para irmos ao site da DGE e vejam a parte de cidadania. E nós começámos a entrar no site e a vermos os nossos vídeos lá sugeridos… Epá, calma lá, isto realmente está a tomar proporções interessantes e os conteúdos estão a chegar onde nós queríamos que chegassem! Portanto, estamos super contentes com o projeto e estamos super entusiasmados porque as coisas estão mesmo a acontecer.

Como foi o vosso desenvolvimento enquanto crianças e enquanto pessoas trans ao longo dos anos?

Isaac: Eu quando tinha 5 anos percebi que as pessoas não me viam como eu me via. A grande maioria ou uma boa parte das pessoas trans percebem desde muito cedo. No meu caso, fui confrontado com o “Tu não és um rapaz” e eu fiquei “Desculpem?” (risos).

Portanto, aos 5 anos, quando tomo a consciência do meu “eu” – que é quando a maior parte das crianças também toma a consciência de padrões da sociedade, de quem é e do que é que isso representa – fui confrontado com o “Tu és isto mas não és.”

Tu sentes que és, mas dizem-te que não és. E vais ver todos os rapazes a fazerem tudo o que é suposto e o que tu queres fazer, mas tu não o podes fazer. Portanto… não é uma infância, digamos assim.

ISAAC D’ORPHEU

Ary: Eu atualmente identifico-me como pessoa não-binária e trans, muitas vezes utilizo a definição de homem porque realmente ainda não está previsto este lugar na sociedade, e por vezes também não tenho muita paciência ou tempo para explicar porque sinto que o foco precisa de ir para outro lado, que estas questões têm de chegar depois porque existem outras prioridades.

Eu comecei a fazer a transição aos 29 anos e por volta dos 30 começaram a contar-me algumas coisas da minha infância. Os meus pais separaram-se quando eu tinha 3 anos, a minha mãe juntou-se com uma pessoa que já tinha duas filhas e o meu pai juntou-se com outra pessoa que também tinha uma filha. Portanto, eu só tinha um irmão de sangue, mais velho do que eu.

Ao que parece, por volta desta altura na escola (3 anos), eu tinha um amigo que me estava a ensinar sobre papéis de género. Na escola, tentaram falar com a minha mãe mas quem recebeu a mensagem foi a minha madrinha, que travou a mensagem porque a minha mãe estava a passar por um divórcio e acharam que iria ser demasiado. Então, o assunto acabou por não ser falado. Ao que parece, eu também não tinha problemas na escola.

Sempre estive num espetro mais masculino mas fluia bastante. Tanto conseguia estar com as minhas amigas a dançar como a marcar golos com os meus amigos – não havia propriamente uma divisão de género comigo. Até porque em minha casa nós éramos quatro crianças de ambos os géneros, então os brinquedos eram de toda a gente, as roupas passavam de umas para as outras, não havia propriamente uma imposição com a qual eu tivesse de chocar para ter esta sensação do Isaac, de “Eu quero fazer isto mas não posso”, “Eu quero ser lido daquela maneira mas não sou”.

Como fazia tudo e podia oscilar e andar de um sítio para o outro, tudo foi sempre super natural para mim.

ARY ZARA

Acho que o meu primeiro grande confronto foi quando quis cortar o cabelo à tigela e não me queriam cortar o cabelo. Foi uma coisa que teve de ser negociada, até que consegui o meu corte à tigela, que era para os retratos da escola do Ensino Primário. Fui assim super orgulhoso com um peluche ao colo e com o meu cabelo à tigela (risos). A minha infância foi muito assim: sempre fiz tudo o que eu quis e nunca pensei muito sobre género porque sempre pude experimentar tudo.

O que é que os pais poderiam entender melhor sobre as crianças, a sua identidade de género e orientação sexual?

Foto: Facebook T Guys Cuddle Too

Isaac: Acho que a primeira coisa para os pais fazerem melhor é não se importarem com os outros. É um erro super comum que vejo todos os pais fazerem: “Ok, eu não me importo que a minha criança brinque ou vista isto, mas não a vou deixar ir à escola ou sair à rua com isto, ou vestida, ou com aquele brinquedo. Porquê? Porque os outros vão cair em cima da criança e ela vai sair magoada, e eu não quero que a minha criança seja magoada física ou psicologicamente.”

Uma criança que tenha uma orientação sexual ou uma identidade de género ou que manifeste ser fluida de alguma forma, é uma criança que poderá sofrer de Bullying. E é uma criança que, em algumas situações da sua vida, vai sentir-se rejeitada.

Se a primeira rejeição vier de casa, porque aquilo que a criança ouve é “Tu não vais sair à rua com isto; Tu não vais usar esse brinquedo; O que é que os outros vão dizer?”, aquilo que fica na cabeça da criança é “Os meus progenitores não se importam comigo, importam-se com o que os outros vão dizer”.

ISAAC D’ORPHEU

E isto é uma coisa que dura anos (e que faz com que as pessoas gastem muito dinheiro na terapia). Este é o primeiro passo para a criança sentir que a rua não é segura, porque não pode dizer quem é, a escola não é segura porque não pode levar isto ou aquilo, e a casa também não. Portanto, isto é a receita perfeita para deixar uma criança sem amparo. E independentemente do que vem a seguir, e de compreender então a orientação sexual e a identidade de género, este é o primeiro passo.

Ary: Depois também não nos podemos esquecer de que há muita coisa que os responsáveis pela criança querem fazer que vai chocar com o mundo atual. Acho que este confronto pode ser duro e, neste sentido, também temos que dar alguma leveza ao papel destas pessoas. Às vezes, por mais que se queira fazer, é difícil, porque existe todo um sistema articulado contra o qual nós vamos chocar.

Portanto, pais, mães, avós: respirem. Porque isto pode não ser fácil e vocês se calhar não vão conseguir fazer tudo, o que é importante é ir tentando e ir ouvindo as crianças no sentido de lhes proporcionar o melhor dentro daquilo que é possível. Acho que é sempre preciso ter esta noção para não se ficarem a massacrar ou com sentimentos de culpa quando realmente este sistema tem muito tempo.

Depois, lembrarmo-nos também que as crianças são um pouco esponjas: o que elas ouvem, elas absorvem. E as crianças ouvem coisas em sítios diferentes: na escola, em casa, na rua, na televisão… e nós também não conseguimos controlar tudo o que uma criança ouve. Portanto, temos de tentar passar os nossos princípios e valores sabendo que há uma parte que é uma envolvente e que não é controlável.

Agora, na parte que nos compete, acho que tudo o que diga respeito a quebrar um pouco os padrões, a incluir todas as possibilidades que existem desde cedo e não condicionar para este sistema que já se viu que não faz sentido para muitas pessoas. Ter atenção também aos brinquedos, que quando vamos ao supermercado vemos logo dois corredores completamente separados. E para as meninas está prevista uma coisa mais de princesa sensível e para os meninos a aventura, a coragem, os carros e as lutas, não é?

O que é que uma menina não estará a perder do corredor de brinquedos dos meninos e o que é que um menino não estará a perder do das meninas? O que é que haverá a ganhar em existir uma mistura, uma dinâmica e uma experimentação?

ARY ZARA

As crianças também aprendem muito a brincar (de início, tudo). Acho que é tentar não condicionar, saber reconhecer os nossos preconceitos (porque todas as pessoas têm preconceitos). Assim que ele salta, nós identificamos e conseguimos trabalhá-lo.

Isaac: Também não tirar conclusões precipitadas. Se um rapaz pedir uma cozinha para brincar, não significa que seja gay ou queira ser empregado, se calhar pode ser chef de cozinha. As crianças querem brincar em liberdade, e acho que isso é o mais importante. E tentar sempre pensar que hoje estamos em 2021 e nos últimos anos nós andámos imenso para a frente. O que é que acontecerá quando a minha criança tiver 16, 17, 20 anos?

As coisas vão continuar a andar para a frente e aquilo que nós podemos fazer, como o Ary disse, é proporcionar o melhor dentro daquilo que está ao nosso alcance. Porque também ninguém quer uma família completamente desgastada – temos de trabalhar com o que temos e com o que podemos.

O que falta desmistificar sobre as pessoas Trans? Quais são alguns dos conceitos / distinções / limites interpessoais que ainda não são compreendidos?

Isaac: Crescer a saber que se é trans é uma coisa difícil, especialmente quando me apercebi de que era trans em 2001-2002, e não havia nenhuma pessoa trans com voz, nenhuma pessoa trans num banco, ou advogada, ou professora… crescer sem role models é complicado. Acho que hoje em dia já existem role models de pessoas trans que podemos mostrar às crianças. As pessoas trans são mais do que trans: são filhos, filhas, partners, são pessoas que têm vida para além de ser trans.

Ser trans não é uma sentença de ser pouco atraente ou de não encontrar alguém para namorar, não é uma sentença para não arranjar trabalho… é possível ser trans e ser feliz, ter uma vida! Isto, na minha experiência, foi o que mais me custou: as pessoas trans não irem a lado nenhum.

Aquelas típicas frases como “Uma pessoa trans só tem a prostituição”. Infelizmente, existem muitas pessoas trans que têm, sim, de recorrer à prostituição, especialmente mulheres emigrantes que vêm para cá tentar fazer as suas transições e viver melhor e que, muitas vezes, não encontram empregos em lado nenhum. Isso é uma realidade, e não podemos fugir disso, mas podemos começar a trabalhar essa realidade e a trabalhar as mentes para que amanhã isso deixe de acontecer. Para que as pessoas que fazem trabalho sexual sejam as que fazem porque querem e não para se alimentarem.

Outra das coisas que também podemos desmistificar é que se fala muito da transição completa, que é uma coisa contra a qual eu e o Ary estamos sempre a falar. Todas as pessoas estão numa constante evolução e transição ao longo da sua vida, e se não estivermos significa que não estamos a fazer assim tanto por nós. É suposto nós evoluirmos ao longo da nossa vida, é suposto estarmos em constante movimento e evolução.

E nós, pessoas trans, a nossa transição não se limita ao nosso corpo. Não temos nenhuma obrigatoriedade de fazer todas as cirurgias possíveis e imaginárias disponíveis no cardápio. E existe muito essa coisa do “Quando é que estás completo”, “Quando é que fazes a transição completa, A cirurgia?”. Não há “A cirurgia”. Há pessoas trans que necessitam, sim, de fazer uma mastectomia ou uma faloplastia, mas há pessoas trans que não necessitam disso.

Nós não precisamos de determinados tipos de cirurgias ou de reposições hormonais para sermos nós próprios: só precisamos de o ser e temos de ser respeitados por isso.

ISAAC D’ORPHEU

Ary: Eu gosto de tentar pensar as pessoas trans como pessoas antes de serem trans, e acho que acaba por ser muito isto que falta. Nós somos pessoas e temos toda uma vida para construir como pessoas, e trans é como uma camada que também temos.

Estava a ouvir o Isaac a dizer que a transição é difícil, mas acho que pensamos pouco sobre isto: é difícil porquê? Se a pessoa quer fazer a transição e quer que isto tudo avance, porque é que é difícil? Não é por causa da pessoa. É por causa de toda a envolvente. Uma pessoa trans acaba por ter problemas não por ser trans, mas por causa da sociedade em que está inserida.

Foto: Instagram Ary Zara

E acho que é um bocado isto que falta. As pessoas atiram a culpa, do género, “Ah, tu és trans, tu vais ter uma vida difícil.”. Eu vou ter uma vida difícil por causa de quem? Não é por causa de mim, eu estou a viver a minha verdade e estou feliz com as escolhas que estou a fazer. Não consigo ser mais feliz por causa de ti. Porque tu não me aceitas, porque tu não me deixas experienciar a minha vida – acho que se fala pouco sobre isto.

A transição é difícil por causa das outras pessoas. Porque a transição em si é um momento de empoderamento e de felicidade incrível. Vocês não imaginam como nós ficamos radiantes quando nos cresce um pelo na cara, é uma festa!

ARY ZARA

Quando o corpo começa a alargar, quando a nossa voz engrossa, quando essas coisas todas que acabam por ser estereótipos de género acontecem connosco, é uma felicidade. Mudarmos o nome, escolhermos o nosso nome, fazermos estas coisas é incrível! Nada disto é difícil, é tudo maravilhoso – o que é difícil são as pessoas, mais nada, não é a nossa transição.

Isaac: E aquele estereótipo de “Ai, as cirurgias, isso custa tanto, isso dói tanto”… Quem faz uma cirurgia fá-la porque necessita imenso dela, e não há nada melhor – não houve melhor dia na minha vida do que acordar da minha cirurgia (risos). Epá, doía, mas partir a cabeça, por exemplo doeu mais, e eu parti umas 7 vezes e está tudo bem, estou vivo, tenho mais duas vidas ainda. Dores são aqueles que não nos deixam ser nós próprios, que não nos deixam viver, que não nos conhecem de lado nenhum e vêm julgar a nossa vida quando só estamos no nosso canto.

Por isso é que tantas pessoas acabam por passar por fases de depressão – porque estão a ser obrigadas a viver uma vida que não é a delas. E a transição, nesse sentido, é sem dúvida uma libertação.

O que falta na disciplina de educação sexual lecionada nas nossas escolas? O que acham importante que os cuidadores transmitam aos mais novos sobre identidade de género, sexualidade, preconceito, respeito pelo outro, etc?

Ary: Nas escolas, ao que parece, quem dá estas disciplinas é um pouco quem calha. Não é propriamente uma pessoa com conhecimento que fala sobre estes assuntos. Se calhar numa altura está a falar de sustentabilidade, e noutra está a falar de pessoas trans. Portanto, não sei até que ponto é que isto não deveria ser alterado.

Se é uma disciplina que engloba tantas coisas diferentes, até que ponto não deveriam ser pessoas diferentes a falar sobre esses assuntos com um maior conhecimento? Se calhar por isso é que estão a mostrar os nossos vídeos na aula de cidadania (risos).

Acho que, como existem uns T Guys, que falam para um público talvez a partir dos 14 anos, também poderá ser desenvolvido conteúdo que passe numa televisão nacional, que seja dirigido a crianças e que seja verdadeiramente inclusivo e informativo. Isto é serviço público, isto tem de acontecer. Não é só atirar as coisas para cima dos pais como se não vivêssemos em sociedade.

ARY ZARA

Isaac: Outra coisa que acho que temos de mencionar sobre a educação sexual é que as pessoas lhe têm pavor. Vêem sexual junto com crianças e parece que até se esquecem que é daí que as crianças vêm mesmo. Quando nós falamos em educação sexual para crianças, temos de começar por coisas básicas. São elas que podem proteger uma criança dos perigos de fora ou que podem salvar uma criança, como o toque.

“Quem é que eu sou, que idade é que eu tenho, onde é que é aceitável que me toquem e quem é que me pode tocar?”. Isto poderia salvar imensas crianças de serem abusadas sexualmente e levá-las a perceberem quando estão em perigo: se as crianças soubessem o que é e o que não é aceitável. Isto poderia ser excelente para turmas de 1º e 2º ciclo. Poderíamos, precisamente, começar por aí.

Foto: Instagram

Ary: E a partir daí é ir subindo! À medida que os anos vão avançando, nós vamos desenvolvendo as temáticas sempre pensando nesta questão primária dos afectos. Depois “Quem é que eu sou”, “Por quem é que eu me atraio” e a partir daí, talvez no sétimo ano, diria eu, focar mais na parte do sexo em si, que já sabemos que não pode ser apenas como colocar um preservativo numa banana. Temos que abrir este leque, explorar as diferentes dinâmicas e de que forma é que podem acontecer.

Falar-se, por exemplo, muito de consentimento, que é uma coisa que faz falta aos jovens: perceberem que podem dizer não e o que é que significa o não. Perceber que se calhar o conteúdo pornográfico disponível de forma gratuita não é a forma como nós na vida real nos relacionamos… Acho que há uma série de questões a serem exploradas a nível da educação sexual, que têm a ver com sexo mas não só. Também tem a ver com afetos, com consentimento e com esta questão da identidade, “quem é que eu sou”.

Isaac: Sim, e para além disso, quando nós estamos a falar em perceber quem é que eu sou e por quem é que me sinto atraído, não estamos a dizer para começarmos a catalogar as crianças todas como trans, cis, gay, lésbica… O que estamos a dizer é: quem é que eu sou? – aqui está o espectro do género, masculino, feminino, e todo um meio desse espectro, pode haver uma fluidez; por quem é que eu me sinto atraído? – dentro deste espectro, aqui à minha frente, porquem é que eu me sinto atraído?

E explicar às crianças que pode haver mais que uma possibilidade de atração, que podem haver preferências e que não há um certo e um errado. Até mesmo quando começamos a falar em sexo e em doenças sexualmente transmissíveis, a única coisa que eu ouvi na escola foi o HIV.

A sexualidade é mais do que sexo, começa com os afetos, e é algo que tem de ser trabalhado em casa, não só para as crianças se protegerem de coisas sexuais, como para se conhecerem e, acima de tudo, para se compreenderem a si e ao seu meio envolvente.

ISAAC D’ORPHEU

Ora, o HIV é uma doença sexualmente transmissível que teve uma pandemia absurda, tudo o que aconteceu foi um desastre total e é uma coisa que tem de ser falada, mas não é a única doença sexualmente transmissível, até porque é um vírus com uma mortabilidade muito alta. Há mais doenças sexualmente transmissíveis, e as crianças muitas vezes não sabem disto. Existem outras doenças sexualmente transmissíveis que podem ser apanhadas fora de penetrações. E desconstruir esta ideia: uma relação sexual não é uma penetração e uma violação não vem só de uma penetração.

Ary: E desconstruir também a menstruação. As pessoas que menstruam não crescerem com nojo do seu sangue, as pessoas que não menstruam não terem nojo do sangue de outra pessoa… perceber que aqui não existe fragilidade, que isto são processos que acontecem e que não tiram poder a ninguém.

Falar da contraceção, de quem deve tomar o quê, quando e como – se calhar não são sempre as pessoas que menstruam e que podem engravidar que podem fazer a contraceção, se calhar também são as outras. Há tanta coisa para explorar neste tema que acho que o que é fornecido fica muito aquém. (…)

Recomendam alguns recursos (filmes, livros, documentários, etc) que possam ajudar as famílias a aprender a lidar com as pessoas LGBT+ com respeito e empatia?

  • Documentário: Transhood, um documentário muito honesto que acompanha várias crianças trans com processos diferentes ao longo do tempo.
  • Filme: Tomboy, um filme que explora a infância de um rapaz trans.
  • Livro: O Pássaro da Alma, de Michal Snunit: não tem nada a ver com género, mas fala sobre as gavetas que cada pessoa tem dentro de si.

Onde gostavam de levar o vosso projeto? O que gostariam de ter alcançado daqui a 5 anos?

Foto: Facebook T Guys Cuddle Too

Ary: Eu gostava que o nosso projeto desaparecesse daqui a 5 anos, gosto muito de pensar nessa ideia. Às vezes custa-me pensar no nosso futuro porque eu quero que já não sejamos necessários, e então custa-me fazer projetos para o futuro e pensar em possibilidades de mundo em que nós ainda somos precisos. Portanto, nesse sentido, com os T Guys, nós vamos estar onde fizer sentido na altura, mas de forma alguma temos assim uma ideia para o projeto.

Nós vamos fazer isto enquanto for necessário. É claro que temos outro tipo de projetos que vão ser necessários durante mais tempo, como por exemplo uma clínica trans de acesso gratuito, porque há problemas que demoram mais a resolver, como a precariedade, a emigração, a legalização… nesse campo teremos ainda coisas a fazer e esta clínica é um projeto a que gostávamos de dar vida. Mas isso já são outras ligações.

Isaac: Nós cada vez mais queremos levar o nosso projeto para fora de portas. O digital foi um meio de chegar às pessoas, de nos darmos a conhecer e de percebermos onde é que somos necessários (porque, como dissemos há pouco, achámos que éramos necessários num campo e afinal não). Portanto, é um bocado difícil para nós perceber onde é que vão precisar de nós. Onde o dever chamar, é onde nós estamos.


Queremos agradecer ao Ary e ao Isaac pelo tempo que dedicaram e pela boa disposição com que acolheram as nossas perguntas. Foi uma conversa recheada de aprendizagens e partilhas importantes, e poderão vê-la por completo em vídeo brevemente no Instagram da Família Pumpkin.

Podem acompanhar o trabalho e os projetos dos T Guys Cuddle Too no site, no canal de YouTube, no Instagram e no Facebook da dupla. Se quiserem dar uma mão a este projeto, passem também pelo Buy Me a Coffee dos T Guys, onde podem oferecer um café (ou um miminho) monetário e contribuir para que o Ary e o Isaac continuem a criar conteúdos úteis e gratuitos para toda a gente.

Têm questões ou experiências que gostariam de partilhar? Contem-nos tudo nos comentários 🙂

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2 comentários em “Questões Trans, Educação e Sociedade: Conversa com T Guys Cuddle Too

  1. Sissi Palma Palma Agosto 26, 2021

    Ary alguma coisa esta evoluindo na sociedade,sou a disso, a tua prima e outro dia uma amiga nossa virtual, falou comigo e me disse que a filha estava no processo de transição para rapariga (…) assumiu perante os pais o ano passado aos 15 anos.beijinhos

    1. Dani Gonçalves - Equipa Pumpkin Agosto 26, 2021

      Agradecemos a partilha, Sissi!
      Os nomes referidos no seu comentário foram ocultados por questões de privacidade.

      Beijinhos abobrinhas 🙂

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